quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guardião Vermelho! A estranha geopolítica dos super-heróis









Estava lendo as últimas edições da finada revista da Mulher-Hulk, quando, mais uma vez, apareceram lá velhos conhecidos dos leitores da Marvel: A guarda invernal, anteriormente conhecida como Supersoldados Soviéticos até os anos 80. Com a queda da União Soviética é claro que esse time de super-heróis russos tinha que mudar de nome.

Embora a guerra fria tenha acabado, os comunistas não estejam mais no comando do governo russo, e o país aderiu ao sistema capitalista, aparentemente, a percepção que os americanos tem em relação aos russos não mudou tanto assim. Pelo menos é o que parece lendo um gibi da Marvel.

Pra qualquer pessoa mais antenada nas noticias internacionais, sabe que o governo Russo é um aliado dos Estados Unidos. Às vezes interesses petrolíferos fazem o país fazer algum acordo com a China, mas preferencialmente, Rússia e EUA têm estado lado a lado em várias questões desde a queda dos soviéticos. Até porque a Rússia não tem mais nada a ver com a China, já que a última continua teoricamente comunista – permitindo o desenvolvimento capitalista dos bens de consumo, mas controlando estrategicamente a indústria dos bens de produção. Talvez em comum, China e Rússia tenham um certo desapego pelo conceito ocidental de democracia.

Embora, novamente, os anti-comunistas gostem de bradar nas revistas e jornais (inclusive brasileiros) que não, a Rússia é hoje mais democrática do que quando era governado pelos comunas. Bom, diga isso ao povo russo. Não a toa, o partido comunista russo voltou a crescer nos últimos tempos, porque se antes o povo não tinha liberdade, tinha ao menos garantido o seu bem estar social. Hoje, o povo russo tem uma liberdade relativa, e nenhum bem estar social. Afinal todo serviço publico foi privatizado, e quem não pode pagar por educação, moradia e saúde é esmagado nas rodas de um sistema sem problemas de consciência em relação ao destino dos mais fracos.

Mas o fato é que a Rússia mudou muito nos últimos vinte anos, para melhor ou pior vai da interpretação ideológica de cada um. O problema é que os americanos continuam com o estereótipo do “inimigo vermelho”, aquele espectro que é o contrário do seu modo de vida. Nos gibis da Marvel é comum os super-heróis russos ficarem no caminho dos super-heróis americanos. Sempre seguindo ordens do seu governo, é claro.

Lógico que num mundo de super-heróis, o governo russo teria sua super-equipe, assim como os EUA. A questão são os personagens. Você tem um cara como o Guardião Vermelho, por exemplo, o cara é um dinossauro da Guerra Fria. Jamais o governo de Vladmir Putin teria esse cara como um símbolo nacional, afinal o Guardião Vermelho é o super-herói comunista por excelência.

Nos anos 90, algum autor da Marvel mais informado até mudou a identidade do herói, o transformando no “Guardião de Aço”, com ele vestindo as cores da bandeira da Rússia, e não mais o uniforme vermelho e branco do comunista Guardião Vermelho. Mas por alguma razão isso foi esquecido, e o Guardião Vermelho voltou a aparecer como representante do governo russo (que de comunista não tem nada). Se fossemos apelar para a lógica, o Guardião Vermelho então deveria ser CONTRA o governo russo, até por uma questão ideológica. Se o caso for dele não ser comunista, então ele não deveria ser o Guardião Vermelho, deveria ser outro herói, tipo o Guardião de Aço.

Outro anacronismo é o Dínamo Escarlate. Ele foi criado nos anos 60, como inimigo do Homem de Ferro na Guerra Fria. A cor da sua armadura faz todo sentido. Hoje em dia, não.

Mas o que me chamou a atenção foram os diálogos da história em que as Damas da Liberdade (as superheroínas feministas que integram um supergrupo com a Mulher-Hulk) enfrentam a Guarda Invernal: A Mulher-Hulk pergunta como Ursa Maior pode ficar do lado do governo que perseguia mutantes. E o Guardião Vermelho explica que entende sobre religião, quando fala que seu avô era um pregador que foi morto num campo de concentração de Stalin. “Então como você pode ficar ao lado do governo”, pergunta a Mulher-Hulk. “Eu só posso mudar as coisas de dentro”, responde o Guardião.

Aí tem duas contradições: primeiro, o avo do Guardião foi morto pelo outro regime, não pelo atual. Então faz sentido o Guardião apoiar o governo atual como apóia, afinal, fica claro que ele tem recriminações do regime anterior, dos comunistas. O problema é que o escritor Peter David (um autor de que gosto muito, mais deveria ser mais antenado com as coisas do mundo) não percebeu esse pequeno detalhe sobre a História Política da Russia, nem sua atualidade. Segundo, se o Guardião tem motivos pra odiar o regime anterior, então porque ele ainda continua sendo um símbolo do comunismo como o Guardião Vermelho, vestindo esse uniforme de super-herói comunista? Não faz o menor sentido.

Fica claro que não só para Peter David, mas também outros autores como Jeph Loeb, que usaram a Guarda Invernal recentemente nas histórias também, a Rússia ainda é comunista. Em termos didáticos, esses gibis são uma verdadeira contribuição a ignorância geral.

A DC também não é muito diferente, se lembrarmos que os defensores do país são caras em armaduras com foices e martelos chamados “Sovietes Supremos”. O pessoal da oposição ao governo, o partido comunista, deve adorar viver no universo dos quadrinhos, onde embora eles não mandem mais, ainda assim os super-heróis do governo carregam seus símbolos e propaganda. Vladmir Putin ficaria intrigado, amigos.

Publicada por Nano Falcãoà(s) 04:20

Um comentário:

  1. A mesma ignorância/desinformação americana que sempre tratou o Brasil como um povo espanhol que vive no meio do mato, mesmo com áreas urbanas

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