quinta-feira, 30 de maio de 2019
Joana D’arc – Santa, Devassa, Rebelde, Mulher…
Tudor Brasil
3 anos ago
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O ano é 1431. A Guerra dos Cem Anos, envolvendo ingleses e franceses, está em um momento decisivo. Condenada por heresia e feitiçaria, uma menina de apenas dezenove anos, arde viva em uma fogueira. Vinte e cinco anos depois, a Igreja Católica reabre o processo e todas as acusações contra ela são retiradas. Séculos mais tarde, em 1910, a menina queimada viva torna-se santa, canonizada pela mesma Igreja e, ainda mais: torna-se padroeira da França.
_A trajetória de vida de Joana d’Arc é tão fascinante quanto a trajetória do mito em que ela foi convertida após a sua morte. Devido a isso, mais do que biografias, temos incontáveis obras ficcionais sobre ela: romances, peças teatrais, games, filmes. A cultura contemporânea ama a Donzela de Orleáns e a revisita constantemente. O que poucos sabem é que o primeiro autor a trazer Joana para a ficção foi justamente o elisabetano William Shakespeare.
Porém, antes de trazer o retrato pouco lisonjeiro, porém fascinante, que Shakespeare traça sobre Joana, convém falar um pouco em termos biográficos.
Para começar, muito do que se convencionou dizer sobre Joana está na fronteira entre o mito, a ficção e a verdade. Colette Beaune, historiadora francesa e estudiosa da vida de Joana, afirma que há muito tempo não existe uma verdade oficial em se tratando de Joana d’Arc.
Ela é a mulher mais bem documentada de toda a época medieval. Tornou-se um mito em vida, ao ser objeto de dois discursos paralelos e contrários: dos armagnacs e dos borguinhões, aliados dos ingleses, que a transformaram em uma feiticeira maligna. Portanto, o processo de condenação (1431) reflete as acusações, enquanto o processo de anulação (1455-6) vale-se do outro lado.
Joana não era “pastora”, mas sim filha de camponeses abastados (para os padrões da época, observe-se). Ela possuía sua própria cama. Camas individuais eram coisa rara no século XV. Mas isso não significa que ela fosse de origem nobre ou uma “princesa bastarda perdida” – mito que circulou de forma bastante intensa durante algum tempo. A alcunha de pastora tinha, antes de tudo, uma dimensão espiritual e simbólica.
Joana foi acolhida na Corte do Delfim por uma razão muito simples: ela era uma profetiza, dentre muitas outras surgidas na época. Os reis de França, tal como os reis do Antigo Testamento, tinham por hábito acolher os mensageiros de Deus. A novidade apresentada por Joana foi justamente sua vontade, por fim satisfeita, de seguir até o campo de batalha.
Joana nasceu em Domremy em 6 de janeiro de 1412. Desde a infância, ouvia vozes, que seriam de Santa Catarina de Alexandria, do arcanjo Miguel e de Santa Margarida de Antioquia. Tais vozes, além de lhe inspirarem a fé a piedade, diziam que ela deveria libertar a França do jugo dos ingleses. Aos 17 anos, buscou o chefe militar de sua região, Robert Baudricourt, pedindo para ser levada à presença do delfim Carlos, que se tornaria Carlos VII. Ele seria o ocupante do trono francês, mas fora afastado da linha sucessória pelo tratado de Troyes. Acompanhada de pequena comitiva, Joana chega à presença de Carlos, revela sua missão e é autorizada a liderar forças militares até Orleáns, que se encontrava sitiada pelos ingleses. Joana liberta Orleáns e tem outras vitórias militares. Carlos é coroado triunfalmente em Reims, em 1429, na presença de Joana. Ela segue em campanhas militares, até ser capturada pelos borguinhões no ano seguinte e ser levada para os ingleses, os quais, por sua vez, a entregam à Inquisição. Após longo julgamento, é condenada à morte na fogueira.
Joana d’Arc é hoje santa, canonizada pela igreja católica em 1910 e objeto de culto e devoção, não apenas na França, mas também em outros lugares do mundo. Sua figura histórica é um ícone de bravura e inocência. A Virgem de Orleáns (óbvia alusão à Virgem Maria – não por acaso, sua data nacional na França é comemorada no segundo domingo de maio), queimada viva na fogueira em 1431, é mártir e heroína, tendo sido retratada biográfica e ficcionalmente de forma quase incessante.
O que pouco se comenta, porém, é que foi o inglês William Shakespeare (1564-1616) provavelmente o primeiro autor a ficcionalizar a figura de Joana d’Arc, supostamente em 1592, na peça Henrique VI, parte 1. Shakespeare, em sua recriação, discute temas que eram caros aos elisabetanos: a figura da mulher guerreira (identificada com o mito das Amazonas), a identidade sexual feminina e a feitiçaria. Além disso, Shakespeare dá a Joana o mesmo final que a História lhe reservou: ela termina sendo queimada na fogueira como bruxa. Na peça, ela tenta de todas as maneiras escapar da morte, negando seus valores até então defendidos, de pureza e honestidade. O tratamento que Shakespeare dá à personagem no desfecho da peça recebeu críticas de diversos autores, que afirmam ter ele criado uma caricatura grosseira de uma figura amada por tantos, e que tal abordagem só se justificaria por ser o poeta um patriota inglês. Bernard Shaw, em prefácio a sua peça Saint Joan, chega a qualificar a cena como “ultrajante”.
Porém, é preciso ter bastante cuidado com esta leitura. Se, de fato, ao final da peça Shakespeare demoniza a figura de Joana d’Arc (e há razões para isto, que veremos adiante), não é este o tom predominante no decorrer da ação, muito pelo contrário.
A figura de Joana como guerreira é construída como contraponto à figura do inglês Lord Talbot, herói de guerra e personificação da honra cavalheiresca inglesa, usando a definição de Gabriele Jackson em seu ensaio antológico sobre Joana d’Arc. Ainda segundo esta autora, a peça estabeleceria um contraste entre “a epítome da ordem e da lealdade” (Talbot) e a “epítome da desordem e da rebelião” (Joana). Enquanto Talbot esforça-se na defesa dos interesses da Inglaterra, mesmo enfrentando dissensões entre os próprios nobres ingleses, Joana consegue reunir em torno de si e de sua causa as lideranças francesas, até então vacilantes diante do poderio inglês.
A rebeldia da Joana de Shakespeare, é, portanto, é uma rebeldia poética e idealista: ela é uma jovem simples, camponesa, que alheia às maquinações políticas de seu país e do país inimigo, lança-se a uma aventura apaixonada para defender aquilo em que acredita: a possibilidade de ver sua pátria livre da presença do invasor. Shakespeare reforça esta perspectiva. Joana se conduz com coragem e determinação, sem vacilações ou dúvidas, até sua última cena, na qual, como vimos, surge sua fraqueza.
Ao ser apresentada ao Delfim Carlos, em um momento particularmente difícil da guerra para a França, Joana é declarada como sendo alguém que tem poderes visionários, que é ao mesmo tempo donzela, santa e profetisa – a caracterização aqui é bastante curiosa, conforme vemos na fala do Bastardo de Orleáns:
Trago comigo uma donzela santa,
que uma visão do céu escolheu para
levantar este cerco fastidioso
e da França expulsar logo os ingleses.
É dotada de espírito profético
em grau mais acentuado do que as nove
sibilas da alta Roma: ela conhece
quanto passou e o que ainda está por vir.
Dizei: posso trazê-la? Ficai certo
De que é infalível quanto vos declaro
Esta mistura de referências cristãs e pagãs, fazendo de Joana um objeto de reverência que, ao mesmo tempo, desperta um certo temor, revela-nos um pouco do fascínio e da ansiedade do pensamento elisabetano em relação às mulheres fortes. Dentre os vários discursos circulantes à época, havia um misto de desejo e repulsa pela Amazona, presente como representação cultural em muitos trabalhos de ficção. O potencial subversivo desta figura mobilizava a sociedade e provavelmente Shakespeare estava ciente do poder que esta personagem exerceria sobre os espectadores.
O fascínio da personagem é construído especialmente por conta de seu poder retórico. O que Joana não conquistaria com lutas, conquistaria com palavras. Vejamos o modo como ela se apresenta ao Delfim:
JOANA – Delfim, por nascimento eu sou pastora,
sem instrução alguma em qualquer arte;
mas quis o céu e, assim, nossa graciosa
Senhora iluminar minha humildade.
Quando eu guardava minhas ovelhinhas
expondo o rosto aos raios esbraseantes
do sol, a mãe de Deus dignou-se em vir-me
visitar, em visão cheia de galas.
Mandou que abandonasse o baixo ofício
e dos males a pátria libertasse;
auxílio prometeu e êxito pleno.
Revelou-se-me em toda a sua glória;
e porque antes eu era mais trigueira,
quase preta, infundiu-me ela seus raios
ofuscantes, que logo me deixaram
com a beleza abençoada que estais vendo.
Dirigi-me as perguntas que quiseres;
sem vacilar responderei a todas.
Põe-me à prova em combate, se te atreves;
verás que me acho acima do meu sexo,
Resolve; serás sempre afortunado
se à luta me levares a teu lado.
Joana coloca-se como “acima de seu sexo”. Será, na guerra, um soldado valoroso e indispensável. Não é, portanto, uma mulher enquadrada nos estereótipos de silêncio e passividade. Ela lutará até o fim pelo que acredita, e será uma ameaça à masculinidade dos homens na peça, especialmente a dos ingleses. Por isso, é preciso rotulá-la e assim que possível, silenciá-la: ”Decerto tem projetos que nós, outros, coitados, ignoramos. As mulheres sabem tentar com lábia irresistível” – diz o Duque de Alençon, claramente impressionado com o discurso de Joana ao Delfim, a quem ela acaba de vencer em um duelo, e que se encontra duplamente vencido: perdeu a luta e está disposto a ser não mais soberano, e sim súdito de Joana. Ela, por sua vez, está ciente de seu triunfo na Corte, mas, curiosamente, também parece reconhecer que a glória é um estado efêmero e passageiro:
A glória é como um círculo sobre a água
que aumenta sempre mais, até que à força
de se alargar, termina em coisa alguma.
Com a morte de Henrique acaba o círculo
da Inglaterra; dispersas se acham todas
as glórias nele inclusas. Neste instante
eu sou como o insolente e altivo barco
que a César carregava e sua fortuna.
A força poética desta fala, segundo Gabriele Jackson, é mais uma demonstração de que Shakespeare constrói uma personagem que nada tem de caricata, mas sim, uma protagonista séria, e, ouso dizer, com matizes do trágico, pois ao antecipar a derrocada dos ingleses após o desaparecimento de Henrique V, utiliza-se de uma imagem (a do círculo sobre a água) que, futuramente, servirá de metáfora para sua própria condição. Portanto, temos uma personagem cujo poder retórico é capaz de conduzir e também amedrontar os homens, os quais, por sua vez, não parecem dispostos a aceitar passivamente tal condição e partem para encontrar não só justificativas para sua submissão diante de Joana, mas também meios para neutralizá-la.
Chegamos, desta forma, à questão da bruxaria. Joana não nega seus possíveis poderes sobrenaturais e admite desde o início não haver para ela “coisas ocultas”. Tal declaração é feita quando, ao chegar para a audiência com o Delfim, um estratagema é tentado para tentar enganá-la. O Duque de Anjou tenta passar-se pelo Delfim, mas ela o desmascara, o que causa desconforto aos nobres presentes. São os poderes de Joana desconcertando os homens, seus próprios compatriotas. Desconforto maior ela causará aos ingleses, que só podem admitir serem vencidos pela francesa se ela for, de fato uma feiticeira.
É curioso perceber que Joana, mesmo com o poder retórico que sabemos ter, não responde aos impropérios de Talbot. Seu embate com ele é físico, militar, e ela o vence, sem preocupar-se em responder às acusações. As ofensas de Talbot contra Joana misturam a feitiçaria e prostituição; mas que, ao mesmo tempo, admiti-lhe também o valor da inteligência (“high-minded strumpet”, no original). Ou seja, uma mulher forte, valorosa e inteligente só pode ser uma bruxa e uma devassa, o máximo da transgressão que precisa ser extirpado da sociedade. O destino da personagem deve caminhar, inevitavelmente, para tal desfecho.
Esta visão estereotipada da mulher como associada ao diabo e ao maligno não é uma característica única da época elisabetana ou da obra de Shakespeare. Segundo a historiadora Georgina Silva Santos em artigo na Revista de História da Biblioteca Nacional, tal pensamento tem raízes profundas na cultura ocidental, estando presente nos discursos médico, jurídico e literário desde a Antiguidade Greco-romana, marcando as relações de gênero desde então. Sua referência popular mais conhecida é a sedução de Eva pela serpente, retratada na Bíblia. Já na Idade Média, época a que pertence a Joana d’Arc histórica, temos o aparecimento do livro O Martelo das Feiticeiras (1484), de autoria de dois inquisidores dominicanos, cujos ensinamentos foram responsáveis por levar à fogueira milhões de mulheres, acusadas de práticas satânicas, que na maioria das vezes nada mais eram do que a tentativas de perpetuar rituais ancestrais da cultura pagã.
Porém, para os franceses, neste momento da peça, Joana consagra-se como heroína, ao vencer o cerco de Orleáns. Como curiosidade, podemos assinalar que Shakespeare torna-se, ele mesmo, um profeta, ao dar ao Delfim a seguinte fala, nas linhas finais do ato 1: “Não mais diremos “São Dionísio (Saint Denis, no original)/Joana la Pucelle será a santa da França”. Na realidade, Joana só viria a ser canonizada no início do século XX, embora, a época da peça, seu processo de reabilitação já estivesse ocorrendo desde 1456.
Joana prossegue com seu encantamento retórico na terceira cena do terceiro ato. É quando ela consegue, com seus encantos de fala, convencer o Duque de Borgonha a deixar de apoiar os ingleses e passar-se para o lado dos franceses, seus compatriotas. O duque rende-se às palavras de Joana “ela me enfeitiçou com suas palavras”. Mais adiante, o antes renitente Alençon admite “O papel da Pucella foi brilhante/ela merece uma coroa de ouro”.
Este será o último momento de glória de Joana na peça. Seu “círculo na água” começa a desmanchar-se. Na cena da morte de Talbot, ela pode ser considerada mordaz, demonstrando um escárnio diante do cadáver dele que não condiz com seu procedimento até então. Mas é no quinto ato que Shakespeare de fato desconstrói a personagem: logo na cena 3, Joana encarna o estereótipo da feiticeira, ao evocar espíritos e demônios para que venham em seu auxílio. Do ponto de vista da estrutura da peça, a cena seria incompreensível se não servisse a um propósito crucial: até aqui, a mulher forte desafiou e venceu seus inimigos, seduziu o público e teve antecipada a sua consagração posterior como santa. Porém, uma mulher com tal força não pode triunfar no palco elisabetano: é preciso fazê-la voltar ao seu lugar, torná-la novamente feminina e, desta forma, acalmar as ansiedades da plateia da época, como diz Gabriele Jackson. Sendo ela “confirmada” como bruxa, seu destino final não surpreenderá ninguém. Não fosse apenas a resposta ao fato histórico, esse final “moralizante” é inevitável diante do que foi construído até então: uma mulher forte, guerreira, honrada, quase invencível, ameaçadora do poderio inglês. É preciso silenciá-la.
Porém, mesmo ao ser calada, as últimas manifestações da personagem não escapam ao perfil de apelo retórico que Shakespeare até agora lhe atribuiu. Joana, vendida e aprisionada, tenta ainda triunfar pela palavra. É por meio do discurso, ainda que contrário a tudo apresentado até então, que ela tenta escapar da morte. Em primeiro lugar, ela nega ser filha de seu pai, um camponês humilde, fingindo ser de origem nobre (negar os pais é, como sabemos, uma transgressão a um dos Dez Mandamentos). Depois, reafirma sua pureza e virgindade, negando qualquer ligação com feitiçaria e espíritos, o que basta para caracterizá-la, diante da plateia, como uma grande mentirosa, já que na cena anterior ela havia feito exatamente o contrário.
Por fim, ao ver que suas súplicas não são aceitas, ela se declara grávida e atribui a paternidade da criança a diferentes figuras da corte francesa, como o Delfim e o Duque de Alençon. Inúteis são estas novas mentiras: Joana é levada para fora de cena, para ser queimada viva: “em pedaços te faze, vire cinza, maldito e imundo embaixador do inferno”, vocifera o inglês York. Não basta matar, é preciso reduzir a cinzas, exterminar, realizar o apagamento total.
A grande transgressão de Joana talvez seja ter rompido não só as barreiras de seu sexo, mas também as de sua classe. Em plena era medieval, uma camponesa menina-mulher move-se até o centro do poder, envolve-se nos negócios de Estado, consegue ter sua voz ouvida, vai para o campo de batalha e suas diretrizes ditam o destino de uma guerra, subvertendo a ordem vigente e redesenhando o mapa da Europa, interferindo nos rumos da nobreza de dois importantes países. Só mesmo a evocação de fatos sobrenaturais pode tornar suportável tal ousadia.
Joana é, praticamente, uma compilação da figura do Outro marginalizado: mulher, jovem, pobre, analfabeta. Em circunstâncias normais, mesmo nos dias de hoje, seu sucesso político seria improvável. No entanto, ela triunfa, mesmo na morte. Sua história incomum surpreendeu a muitos e continua surpreendendo. Vimos, portanto, que Shakespeare, em sua sensibilidade, também não ficou imune ao fascínio de Joana.
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